Artigo de renomado mestre da educação brasileira retrata: A Educação do País em processo de erosão

Compartilhe essa notícia
Please follow and like us:
YouTube
Instagram

Confira abaixo uma análise lúcida e atual do atual momento na educação brasileira, destacada pelo Doutor em Educação (Paris) e Ex-professor da Faculdade de Educação da UnB, Moaci Alves Carneiro. Ele é  autor de mais de 20 livros na área de legislação de ensino.

  

A legislação da Educação Escolar (LDB, art. 1°, § 1°) no Brasil é mais do que suficiente para direcionar os rumos do ensino. Educação e Ensino são conceitos fundantes enraizados na Constituição Federal (art. 205/206), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, art. 1°, § 1°) e no Plano Nacional de Educação-PNE (art. 2° – Diretrizes). O foco é o desenvolvimento    humano,    a    formação    para    uma    cidadania  responsável, a qualificação para o trabalho e o prosseguimento de estudos ao longo da vida, de acordo com o projeto-cidadão de cada um. 

O artigo 214 da Carta Magna sinaliza claramente as obrigações do Estado Nacional “para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos…” 

Apesar da profusão de leis, normas e assemelhados no campo educacional,  os  legisladores  brasileiros  revelam-se  incansáveis  em produzir  cada  dia  mais  ordenamentos  legais,  repetitivos,  algumas vezes,  e  incongruentes,  outras.  Deveriam,  ao  contrário,  cumprir  a responsabilidade pública e funcional de fiscalizar as leis que existem e balizar   penas   contra   gestores   recalcitrantes.   Não   o   fazem   por conveniência política, como também, por conveniência, tem resistido em cumprir a Lei de Responsabilidade Educacional, prevista na Meta 20, Estratégia 20.11, da Lei do PNE. 

A conduta legisferante dos parlamentares brasileiros no campo da educação não é incomum em outros contextos fora do Brasil. Entre nós, é  apenas  exacerbada.  Martin  Luther  King  cobrava  uma  conduta responsiva  e  responsável  dos  legisladores  norte-americanos,  em contato com membros da Comissão de Educação do Congresso de seu país. Em certa oportunidade, chegou a dizer: “Não me interessa saber as leis que os senhores estão dispostos a fazer, mas, sim, quero saber o que os impede de cumprir as leis já feitas e sempre descumpridas”. 

Historicamente, o Brasil tem-se caracterizado por legisladores e gestores públicos tutelados por interesses subalternos no campo dos direitos sociais, entre os quais está a educação (CF, art. 206). Aqui, o prejuízo direto incide sobre toda a sociedade, mas, sobretudo, sobre o universo  dos  alunos  mais  pobres,  cujo  ensino  e  aprendizagem  são deficientes e deficitários. 

Se o Brasil não assumir a Educação Básica como bússola para uma cidadania participativa e solidária e como pré-condição para garantir os rumos do desenvolvimento desejado, a sociedade nacional continuará condenada a um distanciamento crescente em relação aos países de desenvolvimento  avançado  e  em  contínuo  processo  de  evolução. Nestes, enquanto se discute a inclusão de tecnologias de ponta no currículo escolar e na formação dos alunos, no contexto da Quarta Revolução Industrial ou da Indústria 4.0 (uso de inteligência artificial, computação    cognitiva,    realidade    virtual,    internet    das    coisas, 

computação em nuvem, blochchain, veículos autônomos e 5G – a quinta geração  de  comunicações  móveis,  em  que  tudo  se  interliga  e  se conecta), no Brasil, insistimos em cultivar a atenção deslocada através de voos rasantes em torno de dimensões secundárias, alimentadas por visões ideológicas primárias, como é o caso da indução de uso de uma metodologia de alfabetização, quando, de fato, isto é competência dos sistemas de ensino, no âmbito de sua autonomia. O papel da União, neste  caso,  será  tão  somente  assegurar  o  Processo  Nacional  de Avaliação, tendo em vista a contínua melhoria da qualidade do ensino (LDB, art. 9°, Inc. VI). 

Quando  asfixiada  por  disputas  ideológicas  que  impedem  a sociedade  a  caminhar  na  direção  dos  objetivos  fundamentais  da República  (CF,  art.  3°),  a  educação  fica  desfigurada  e  esvazia  seu conteúdo   de   relevância   para   a   cidadania   cujos   alinhamentos formativos, de natureza axiológica e teleológica, constam do art. 2° da LDB: pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. 

A pedagogia, enquanto ambiente de confluência das ciências da educação, não pode ser asfixiada por núcleos ideológicos restritos, sob pena de perder sua dimensão transcendental, que consiste em cuidar do desenvolvimento humano em amplitudes desfronteiradas. E mais: o exercício de ideologias na gestão da educação produz processos de erosão no conjunto do ciclo de aprendizagem dos alunos, além de deixá-los, juntamente com seus professores, olhando para o chão, em vez de permanecerem sempre olhando para a frente. 

É inegável, e a sociedade tem registrado isso com veemência, que estamos  atrasados  em  cronogramas  e  emperrados  em  questões artificialmente   postas.   Como   sair   deste   labirinto,   movidos   que estamos  pelo  sentido  de  urgências?  Antoine  Laporte  lembra  que urgência não é o que tem que ser feito agora, mas o que já deveria ter sido feito. O INEP e o FNDE estão com suas agendas em atraso, mas… as escolas estão em funcionamento. E agora José?! 

Nossas  urgências  no  campo  educacional  são  de  uma  clareza meridiana.  Aos  gestores  cabe  não  apenas  reunir  as  prioridades conhecidas  já  de  todos,  mas  também  alinhar  as  precedências,  de acordo com a diversidade de contextos regionais e locais. Entre umas e outras ( prioridades/precedências), não há como retardar providências- resposta no campo das definições sistêmicas, envolvendo: 1) o ENEM; 

2) a Reforma do Ensino Médio; 3) a Implementação da BNCC; 4) os Novos Balizamentos do FUNDEB; 5) a Regulamentação do Regime de Colaboração com Estados e Municípios; 6) o Custo Aluno-Qualidade; 7) a Carreira Docente e a correspondente formação dos professores; 8) o Ensino Integral no palco da escola de tempo integral; 9) o Ensino Médio Noturno; 10) o uso adequado de tecnologias educacionais em todas as escolas; 11) O perfil do professor de notório saber; 12) o resgate da Educação Básica como alinhamento inteiriço de processos integrados, e, não, como acontece hoje: entrepartes de um todo desarticulado; 13) a oferta de Educação Profissional ao alcance de todos; 14)o resgate da qualidade dos cursos de graduação; 15) atualização de catálogo de cursos de graduação, com a oferta de novos programas consentâneos com  as  exigências  de  um  mercado  em  contínua  evolução;  16)  o acompanhamento e controle da oferta de Educação a Distância, que funciona,   hoje,   com   baixíssimos   níveis   de   acompanhamento   e supervisão; 17) o fomento e aperfeiçoamento das ações de assistência técnica e financeira a estados e municípios; 18) a implantação de um sistema  de  articulação  com  estados  e  municípios,  com  dinâmica reconceituada e diferenciada, respeitando as singularidades das regiões e de cada ente federado; 19) a implantação de um sistemas de creches com funcionamento em múltiplas modalidades, de tal sorte que se comece, de fato, a cumprir a Meta 01 e correspondentes Estratégias do Plano  Nacional  de  Educação;  e,  por  fim,  20)  o  realinhamento  das próprias instâncias do MEC (secretarias e órgãos vinculados) para que não continuem a operar como irmãos xipófagos: unidos no corpo, mas separados nas visões. Este processo de distonia sistêmica, aliás, tende a se agravar se aos gestores atuais faltar a compreensão de que, em educação, não se trabalha com produtos, mas com processos. E mais: que os processos aqui tem um único objetivo: elevar os padrões da qualidade  da  aprendizagem  dos  alunos.  Para  tanto,  não  há  como afastar o olhar dos gestores, do binômio: igualdade/equidade. 

A igualdade refere-se à disponibilidade de condições igualitárias para   cada   aluno   aproveitar   maximamente   as   oportunidades   de aprender e de exercer o direito à educação. A equidade, por sua vez, diz respeito à obrigatoriedade de os sistemas de ensino disponibilizarem, a todos os alunos, oferta educacional em tríplice dimensão: no acesso, nos processos e nos resultados. Como assinala documento da UNESCO, a educação deve tratar de forma diferenciada o que é desigual na origem para se chegar a resultados na aprendizagem equiparáveis e não  reproduzir  as  desigualdades  presentes  na  sociedade  (UNESCO, Educação de Qualidade Para Todos, OREALC, 2007:13). No Brasil, vamos ficando cada vez mais distantes do horizonte da equidade na educação. 

O  binômio  igualdade/equidade  somente  irradia  as  políticas públicas da educação quando chega a cada escola e, não, apenas, a algumas. Fora disto, prevalecerá o ilusionismo político de sempre! E, para chegar à sala de aula e repercutir positivamente na aprendizagem dos alunos, há rotas a percorrer e procedimentos a adotar, sobretudo em sociedades desiguais como a nossa. Há duas décadas, a Comissão Internacional sobre Educação da UNESCO apontou os seguintes seis eixos a seguir (apud. Pourtois, JEAN-PIERRE e Desmet, HUGUETTE, A Educação pós-moderna, Loyola, 1999:14): 

1) Educação e cultura: Como se encaminhar para o domínio de si e a compreensão do mundo? 

2) Educação e cidadania: Como pode a educação forjar cidadãos livres e responsáveis?  

3) Educação e coesão social: O que pode fazer a educação para facilitar  coesão  social,  ameaçada  não  só  nos  países  em desenvolvimento, mas também nos países ricos? 

4) Educação, trabalho e emprego: De que conhecimentos e de que know-how os indivíduos terão necessidades para participar ativamente da economia e do mercado de mão-de-obra? 

5) Educação   e   desenvolvimento:   Como   pode   a   educação contribuir não somente para o progresso, mas também para a difusão equilibrada deste em todo o meio econômico e social? 

6) Educação,  pesquisa  e  ciência:  Como  fazer  para  que  cada indivíduo tenha a possibilidade de assumir o que, no progresso científico  e  tecnológico,  responde  as  necessidades  de  seu trabalho e de sua vida cotidiana?   

Dos gestores da educação, a sociedade brasileira espera prumos e rumos. Prumos para sinalizar claramente que, se a educação escolar é constituída de processos sistêmicos, só há um caminho a seguir: regime   de   colaboração   e   articulação   sistêmica   com   estados   e municípios.   Rumos   para   sinalizar   diretrizes   claras   e   objetivos induvidosos e plurais, em consonância com a pluralidade das situações geossociais dos sistemas de ensino, das escolas, dos professores e dos alunos.  Dos  legisladores,  esperam-se  vias  sem  desvios.  Vias  que trabalhem  os  conceitos  operativos  de  educação  inclusiva,  integral, integrada  e  de  relevância  social.  E  educação  sem  desvios,  que, portanto,    cobre    dos    gestores    o    cumprimento    da    Lei    de Responsabilidade Educacional. 

Para evitar a contínua erosão da educação, cabe ao MEC, a par da função executiva, cumprir também função antecipatória: isto implica em  resgatar  a  capacidade  de  planejamento  sistêmico,  envolvendo novos  formatos  de  diálogos  com  os  entes  federados.  Um  aspecto apresenta-se impositivo: não dá para operar a máquina do MEC com os faróis desligados! A situação de paralisia da instância federal tem efeito dominó sobre as redes de escolas. Por isso, sem um planejamento de curto,  médio  e  longo  prazo,  a  sociedade  não  conseguirá  imaginar cenários de uma aprendizagem relevante e positiva para os alunos queacorrem às escolas. Gerir a burocracia do MEC não é suficiente para “coordenar  a  Política  Nacional  de  Educação,  articulando  níveis  e sistemas de ensino” (LDB, art. 8°, §1°). Também, não é suficiente para clarear o diálogo com a complexa malha de sistemas de ensino do país. Confundir estes dois conceitos poderá levar a proliferação de sistemas “guetizados” de gestão, circunstância que contribuiria para a erosão ainda mais rápida da educação do País. 

A situação da Educação Escolar no Brasil é tão dramática que só há uma direção: entrar em regime de urgência a longo prazo.!!! O paradoxo não está na afirmação, mas em um país que insiste em tratar a gestão da educação como fator político-ideológico. A questão central parece ser outra: por que o Brasil vive em processo de desmonte do Plano  Nacional  de  Educação/PNE?  Responder  a  esta  questão  é  o primeiro  passo  para  estancar  as  causas  do  processo  de  erosão  da educação brasileira. 

 

 
Moaci Alves Carneiro
Doutor em Educação/Paris
Ex-professor da Faculdade de Educação da UnB
Diretor do Encontro de Laboratórios de Cidadania e Educação/ENLACE, Brasília-DF

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial